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Friday 20 June 2008

a tela

O visível é a manifestação do invisível

Foi quando morreste para a vida Alef... naquela noite de lua cheia e poderosa, em todo o seu esplendor, que a tua vida me escapou entre os dedos e eu renasci. Chorei naquela rua negra, onde a brisa da noite se misturava com um suave odor de rosas. Era o teu cheiro certamente. Recortado pela luz da lua, olhava o teu lindo corpo de contornos perfeitos, uma visão cerúlea de pura beleza. Ruminava em silêncio a dor de quem perde o mundo, sem nunca o ter tido. A incerteza da beleza da vida, de quem ama.

E os anjos, menos felizes no céu,
Ainda a nos invejar...
Sim, foi essa a razão (como sabem todos,
Neste reino ao pé do mar)
Que o vento saiu da nuvem de noite
Gelando e matando a que eu soube amar.
(Annabel Lee - Edgar Allan Poe - Tradução Fernando Pessoa)



Olhei em meu redor, a vida fervilhava, num silêncio incómodo, de quem tudo vê sem nada olhar.
Uma linda mulher aproximava-se. Sustive a respiração e abracei-me ao corpo inerte. Naquele reduto de morte, aproximava-se outro. És tu a morte?
Num movimento, tão rápido que me assustou, a mulher desapareceu na escuridão num umbral de porta. Nesse instante, mergulhei nas sombras. Agarrei com avidez o corpo frio, o meu porto de abrigo, numa torrente de calafrios, sofregos, perscrutei cada centímetro da calçada. Corpos cansados e bêbados deambulavam, num ritmo agonizante. Um atolhamento de corpos que se cruzavam, sem nunca se encontrarem. E ali estavamos nós. Ainda havia nós?
Ela voltou. Num ápice, de felina, saltou sobre os caminhantes. No tempo certo. Semicerrei os olhos, suplicando por vida, junto ao teu corpo sem vida.
Num gesto poderoso, com as mãos crispadas, fortes e esguias, a mulher, arremessou a mole humana, contra a parede. O silêncio voltou, ensucedor. Com um rosnar animalesco, a mulher atirou-se sobre o velho de capuz violeta e dobrou-lhe caridosamente o pescoço. Movimento elegante, cadência vertiginosa, numa dança clássica, fez com que cada osso do mendigo se dobrasse, até rasgar a carne velha, cansada. Gotículas de sangue adornavam a boca semiaberta. Sorveu, sorveu. Depois, agarrou o outro mendigo. Sugou avidamente o liquido vital de cada um dos ineptos. Cadáver era, cada um, no final.

Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo,
«É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isso e nada mais».

E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
«Senhor», eu disse, «ou senhora, decerto me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo,
Tão levemente batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi...» E abri largos, franquendo-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.

(O Corvo - Edgar Allan Poe - Tradução Fernando Pessoa)

De coração alvoraçado e despedaçado, numa mágoa contida, olhei os restos dos cadáveres. Agarrei o teu corpo com vigor. Cada centímetro da tua pele dava-me vida. Estava contigo, davas-me vida. Os teus músculos rígidos escureciam os meus olhos. Um sentimento de perda irreparável e absoluta tomou conta do meu ser. Apaixonada pela beleza dos teus cílios, chorei naquela ilusão perdida. Vejo-te mais uma vez. E a mim, ninguém me via? Senti uma alegria inexplicável. Levaste-me contigo meu amor?
Num turpor, deixei escapar o teu corpo inerte e ergui-me. Alonguei cada tendão do meu corpo, humedeci os lábios, sequei os olhos. Para onde vamos? Não vens?
Fui interrompida por um sibilar próximo. Um vulto gigantesco assomou ao cimo da calçada. Um ser belo, inquietante. Fui ao seu encontro. Deixei-te. No frio do granito, adormecido, ficaste meu amor(te). Queria atirar-me nos braços longos e alvos como a lua cheia. Queria que ele me consumisse, como uma pétala de rosa. Em estado de exaltação, vislumbrei os meus membros espalhados no chão. O meu sangue escorria na sua boca de vampiro. Voltei a viver. Volta, hoje não vens! E ele desapareceu na escuridão da noite gélida.

Deambulei o dia inteiro, às voltas, errante, e evitando a calçada daquela noite. Extenuada, continuei a calcorrear as ruas até ao horizonte. Não te vi mais. Já não estavas comigo. Morri eu meu amor. Morri, quando olhei aquela escuridão. A tua falta doía na minha alma. Anoitecia devagarinho. Estava frio, os dedos enregelavam, as pernas entorpecidas, os olhos derramavam lágrimas. Seriam por ti? Rejubilei de alegria quando senti o ser a deslizar à minha frente. Estava perto, sem distância. Não conseguia ver bem na escuridão da noite, mas reconheci o casaco comprido e ouvi com nitidez o estalar dos seus dedos, o sibilar insinuante dasua boca. Alvoraçada pela visão, corri desavorada ao seu encontro. A minha respiração ofegante ecoou na penumbra da noite. Semicerrei os olhos, a tênue luz da iluminação da rua ofuscava a sombra. Consegui antever os contornos sinuosos de mulher a aproximar-se, em reflexos vermelhos. Uniram-se os corpos, escalvados pela brisa nocturna e mortífera, numa tentação desconcertante. Depois, corri...corri...corri. Numa fuga sem tempo, num vórtice fulminante. Gritei num ronco gutural. Libertei-me, num orgasmo de vida. Todo o meu desejo pela morte desvaneceu-se. Sim, agora, eu quero viver!
Vim buscar-te, murmurou a mulher, com o seu rosto alvo colado ao meu.
Estremeci de horror e ela olhou-me no fundo dos meus olhos. Desviei o olhar. O ser gigante bebia com avidez o sangue de um corpo quente, no meio da rua. O seu rosto tinha uma máscara preta de seda. Senti a macieza de cada linha. Parei, estática e lúcida de medo. Mas era tarde. A mulher emitiu um fragor feroz e agarrou-se à minha garganta. Consegui soltar-me, em gestos relutantes, pejados de vida. Fui surripiada num rodopio de forças sobranaturais. Voei nos seus ombros fortes. Mantive-me imóvel, no aconchego dos seus braços. Ele colocou a sua mão gelada e firme sobre a minha boca. A mulher vigiava a rua. A sua voz suave e vibrante ecoou nos meus ouvidos surdos, ele disse: És minha!
Senti em cada poro o extraordinário poder que ele tinha. Caí no chão, aterrorizada, as mãos cerradas esmagando a cabeça à espera do golpe fatal. Um sentimento confuso de dor e doçura intensa misturavam-se. Os seus olhos sanguinolentos e belos, enlouqueciam-me de prazer, contornavam o meu corpo, esmagavam-me num abraço de morte. Fechei os olhos. Os seus lábios colaram-se os meus. A sua língua juntou-se à minha, num beijo gelado, como o frio das estepes. Não resisti. Abandonei-me no seu corpo. Abri os olhos. Era ela afinal, a mulher. E a minha vida, terminava mais uma vez, naquele abraço mortal. Morri, volto para ti meu amor! Não estás sozinho na selva urbana...

Durante meio século nenhum mortal os perturbou. In pace requiescat!
Ela deixou-me viver. Senti que tinha morrido. E que naquele dia, tinha renascido. Embriagada de amor.
Acordo assustada. Olho enternecida, o corpo moreno e forte do homem que dorme agarrado ao meu colo. Estás aqui meu amor? Serão apenas sonhos funestos, em matizes fortes de pinceladas numa tela?

Não Alef, não somos meu amor...!



Alef - Representa um homem que estende uma mão para céu e o outro para a terra. O princípio activo de TUDO.

by xinxa